Nos dias que se seguiram àquele primeiro encontro eu me pegava pensando em Natália com uma frequência irritante. Sim, irritante, porque parecia que eu não tinha controle sobre meus pensamentos. Minha cabeça revivificava cada detalhe, ainda que bobo, daquela noite.
O rosto levemente ovalado e expressivo de Natália, contra uma tez clara, quase diáfana, e que terminava em um queixo delicado mas incisivo, que parecia espetar o ar à sua frente, e com uma covinha quase imperceptível. Os seus olhos, que me faziam lembrar Homero, ao descrever os aqueus, por oblongos, eram de um verde acinzentado, herméticos, misteriosos, e nos quais se podiam antever dias azuis e ensolarados seguidos por tempestades avassaladoras. Mas era a boca, com seus arcos delicados e harmoniosos, que sintetizava bem o conjunto. Ah, com eu quis beijar aquela boca, confesso agora, desde o primeiro momento.
E enquanto eu repassava tudo, me surpreendi ao lembrar daquela impressão inicial, a de uma beleza trivial! Ainda que eu estivesse mais ou menos ciente de que o meu senso crítico e de moderação já não me acudiam àquela altura, tudo o que eu podia dizer então era que a beleza da Natália podia ser muitas coisas, menos trivial.
Uma outra coisa, até então totalmente estranha para mim, aconteceu naqueles dias; foi um sentimento que surgiu de modo quase imperceptível e foi se exasperando.
Apenas por um dia é a natureza daquilo que é efêmero, transitório, impermanente, mas nem por isso menos belo, singular ou desprovido de importância. Sempre haverá uma perspectiva, um fragmento encoberto, que faz com que algo qualquer envolva alguma qualidade incomum, ainda que ambígua, mas por isso mesmo, rara.
sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
quinta-feira, 29 de dezembro de 2016
O sumidouro da Voluntários - III
Quando bati os olhos no rádio-relógio já passava das onze. Eu não estava com muito ânimo para levantar e a cervejada da noite anterior ainda fazia sentir os seus efeitos. Artur me convidara para almoçar em sua casa, mas eu já havia me decidido a ficar em meu apartamento mesmo. Tinha que estudar. Depois de mais um cochilo breve, criei coragem e levantei. Fui até a cozinha e preparei o chimarrão.
Abri a janela da sala, que dava para a Voluntários. O dia estava esplêndido, ensolarado e o azul do céu, por conta da chuva que caíra na madrugada, parecia ter sido lavado. No três-em-um botei para tocar o último disco do Vitor Ramil, Tango, e então comecei a olhar a matéria.
Abri a janela da sala, que dava para a Voluntários. O dia estava esplêndido, ensolarado e o azul do céu, por conta da chuva que caíra na madrugada, parecia ter sido lavado. No três-em-um botei para tocar o último disco do Vitor Ramil, Tango, e então comecei a olhar a matéria.
Havia uma semana que o Marquinhos tinha retornado a Carazinho. Sua mãe, dona Jacira, estava seriamente doente, de modo que eu estava só, no apartamento. Mas a solidão não me incomodava em absoluto. Desde que viera para Porto Alegre, há cinco anos, eu tinha me acostumado a uma certa dose de solidão. E depois da morte de meu pai, há um ano e meio, as minhas idas a Cruz Alta estavam ficando cada vez mais escassas. O trabalho, a faculdade, mas, sobretudo nos últimos meses, o fato de minha mãe estar de caso com um sujeito, com tão pouco tempo de viuvez, o que me deixara transtornado, contribuíram bastante para isso.
Em nossa última conversa eu tinha sido bastante duro com minha mãe; falei coisas das quais eu viria a me envergonhar mais tarde. Mas o fato é que havia passado pouco mais de um ano desde a morte de meu pai e então, em uma de minhas idas para casa, minha irmã mais velha, Marina, me confidenciou o que seria um suposto flerte de nossa mãe. Ela disse que só estava me contando para que eu não fosse tomado de surpresa. Naquela oportunidade, desconcertado e enfurecido, não consegui encarar minha mãe e cuidei de retornar prontamente para Porto Alegre. Torci para que, se aquilo fosse mesmo verdade, em minha próxima ida a história já tivesse terminado.
No curso dos dois meses que antecederam minha última ida a Cruz Alta naquele ano, Marina ia me pondo ao par da evolução do relacionamento de minha mãe com o tal sujeito. Segundo Marina, minha mãe o havia apresentado ao seu marido, Pedro, meu cunhado. Depois ela convidou a ambos, Pedro e Marina, além de suas filhas, minhas sobrinhas, Beatrice e Berenice, para jantarem em nossa casa, ocasião em que, segundo Marina, o relacionamento foi selado. Nossa irmã mais nova, Adele, não se encontrava na ocasião, mas, segundo Marina, já estava ao par de tudo.
A essa altura achei que era hora de por um ponto final naquele disparate. Então, quando chegou outubro, fui a Cruz Alta disposto a chamar minha mãe à razão. E assim, na conversa que se seguiu, muitas coisas foram ditas. Algumas que não deveriam, e outras que até deveriam, mas não naquela ocasião, e nem da forma como foram ditas.
Hoje, depois de tanto tempo, olhando para trás, fico pensando no quão estranhas são essas narrativas quando as olhamos com distanciamento. A impressão que fica é a de que passamos boa parte da vida em um mundo só nosso, ideando coisas e formas ideais à revelia dos outros, e depois perdemos outra parte importante da vida tentando espremer os ideais, os outros e o universo nesses moldes, impondo assim uma dose extra de sofrimento a nós mesmos e àqueles a quem supostamente amamos, sofrimento além daquele que a vida já nos impõe naturalmente.
À noite, depois de comer alguma coisa, decidi deixar um pouco de lado as questões sobre a ordem da vocação hereditária e aceitar o convite da Mel. Desci até o apartamento delas, como alias, costumava fazer aos domingos, invariavelmente para um carteado regado a algum tipo de destilado. E, justamente por ser um domingo, lá estavam todas elas, em torno da mesa da sala, jogando buraco: Mel, Andréa, Jociane, Nora, a gerente da casa, por assim dizer, e protagonizando a cena, ela, Natália.
Andréa foi até a porta, beijou-me a boca furtivamente enquanto todas iam me apresentando simultaneamente. "Olha, Natália, esse é o Paulo... é o nosso vizinho aqui de cima... ele trabalha na Mesbla, está se formando em direito... e a parte mais deliciosa, o Paulo é poeta e por isso goza de... hmmm... certas regalias aqui conosco, entendeu?!" A última frase foi dita entre risos e gritinhos ruidosos. "E mais uma coisa importante sobre o Paulo, Natália, e que tu precisas saber: o Paulo é uma espécie de príncipe das meninas ali da Voluntários."
"Como assim, uma espécie de príncipe?!", retorquiu Natália. "Ah, um dia a gente te conta essa história bem direitinho, é longa", completou Nora. "Não, não! Não é nada disso. Não acredites. Elas estão inventando umas coisas e exagerando outras!", disse eu, constrangido. "Hmmm... interessante! Fiquei curiosa para saber onde fica o exagero e aonde vai a invenção!", disse Natália, com um sorriso breve e luminoso, que me atingiram de um modo estranho, sem que eu estivesse preparado para o impacto.
E foi assim que, em uma noite de dezembro daquele longínquo ano de 1986, em meio as risadas estridentes e conversas levianas que se atravessavam e se sobrepunham, tudo regado a uma batida de amendoim de péssima qualidade, conheci Natália.
"Conhece o Bukowski, poeta?!", perguntou Natália a certa altura, e fazendo com os dedos sinal de entre aspas ao falar a palavra poeta. "Bem, dele eu li Cartas na Rua", respondi. "O que?! Crônicas de um amor louco, Misto quente, Fabulário geral do delírio cotidiano... nada?!", provocou ela. "Não, não.", respondi um pouco embaraçado.
Lembro de ter pensado em como seria possível que estivesse ali alguém que, entre outras coisas, lera Bukowski, por exemplo. O mundo era mesmo um lugar estranho, ou, pelo menos, aquele mundo onde eu me encontrava.
Em nossa última conversa eu tinha sido bastante duro com minha mãe; falei coisas das quais eu viria a me envergonhar mais tarde. Mas o fato é que havia passado pouco mais de um ano desde a morte de meu pai e então, em uma de minhas idas para casa, minha irmã mais velha, Marina, me confidenciou o que seria um suposto flerte de nossa mãe. Ela disse que só estava me contando para que eu não fosse tomado de surpresa. Naquela oportunidade, desconcertado e enfurecido, não consegui encarar minha mãe e cuidei de retornar prontamente para Porto Alegre. Torci para que, se aquilo fosse mesmo verdade, em minha próxima ida a história já tivesse terminado.
No curso dos dois meses que antecederam minha última ida a Cruz Alta naquele ano, Marina ia me pondo ao par da evolução do relacionamento de minha mãe com o tal sujeito. Segundo Marina, minha mãe o havia apresentado ao seu marido, Pedro, meu cunhado. Depois ela convidou a ambos, Pedro e Marina, além de suas filhas, minhas sobrinhas, Beatrice e Berenice, para jantarem em nossa casa, ocasião em que, segundo Marina, o relacionamento foi selado. Nossa irmã mais nova, Adele, não se encontrava na ocasião, mas, segundo Marina, já estava ao par de tudo.
A essa altura achei que era hora de por um ponto final naquele disparate. Então, quando chegou outubro, fui a Cruz Alta disposto a chamar minha mãe à razão. E assim, na conversa que se seguiu, muitas coisas foram ditas. Algumas que não deveriam, e outras que até deveriam, mas não naquela ocasião, e nem da forma como foram ditas.
Hoje, depois de tanto tempo, olhando para trás, fico pensando no quão estranhas são essas narrativas quando as olhamos com distanciamento. A impressão que fica é a de que passamos boa parte da vida em um mundo só nosso, ideando coisas e formas ideais à revelia dos outros, e depois perdemos outra parte importante da vida tentando espremer os ideais, os outros e o universo nesses moldes, impondo assim uma dose extra de sofrimento a nós mesmos e àqueles a quem supostamente amamos, sofrimento além daquele que a vida já nos impõe naturalmente.
À noite, depois de comer alguma coisa, decidi deixar um pouco de lado as questões sobre a ordem da vocação hereditária e aceitar o convite da Mel. Desci até o apartamento delas, como alias, costumava fazer aos domingos, invariavelmente para um carteado regado a algum tipo de destilado. E, justamente por ser um domingo, lá estavam todas elas, em torno da mesa da sala, jogando buraco: Mel, Andréa, Jociane, Nora, a gerente da casa, por assim dizer, e protagonizando a cena, ela, Natália.
Andréa foi até a porta, beijou-me a boca furtivamente enquanto todas iam me apresentando simultaneamente. "Olha, Natália, esse é o Paulo... é o nosso vizinho aqui de cima... ele trabalha na Mesbla, está se formando em direito... e a parte mais deliciosa, o Paulo é poeta e por isso goza de... hmmm... certas regalias aqui conosco, entendeu?!" A última frase foi dita entre risos e gritinhos ruidosos. "E mais uma coisa importante sobre o Paulo, Natália, e que tu precisas saber: o Paulo é uma espécie de príncipe das meninas ali da Voluntários."
"Como assim, uma espécie de príncipe?!", retorquiu Natália. "Ah, um dia a gente te conta essa história bem direitinho, é longa", completou Nora. "Não, não! Não é nada disso. Não acredites. Elas estão inventando umas coisas e exagerando outras!", disse eu, constrangido. "Hmmm... interessante! Fiquei curiosa para saber onde fica o exagero e aonde vai a invenção!", disse Natália, com um sorriso breve e luminoso, que me atingiram de um modo estranho, sem que eu estivesse preparado para o impacto.
E foi assim que, em uma noite de dezembro daquele longínquo ano de 1986, em meio as risadas estridentes e conversas levianas que se atravessavam e se sobrepunham, tudo regado a uma batida de amendoim de péssima qualidade, conheci Natália.
"Conhece o Bukowski, poeta?!", perguntou Natália a certa altura, e fazendo com os dedos sinal de entre aspas ao falar a palavra poeta. "Bem, dele eu li Cartas na Rua", respondi. "O que?! Crônicas de um amor louco, Misto quente, Fabulário geral do delírio cotidiano... nada?!", provocou ela. "Não, não.", respondi um pouco embaraçado.
Lembro de ter pensado em como seria possível que estivesse ali alguém que, entre outras coisas, lera Bukowski, por exemplo. O mundo era mesmo um lugar estranho, ou, pelo menos, aquele mundo onde eu me encontrava.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2016
O sumidouro da Voluntários - parte II
Natália! Era esse o seu nome. Ou, pelo menos, o nome que ela escolhera quando decidiu mudar-se para o prediozinho de número 87, na Rua Senhor dos Passos. Foi Melissa quem primeiro me contou de sua chegada, quando nos esbarramos nas escadarias naquela manhã de sábado. "Ela é linda... tu vais gostar dela...é inteligente...Aliás, todos vão gostar dela... Somos amigas desde a adolescência...". A Mel era assim mesmo, era da sua índole exagerar um pouco as coisas, então... Mel arrematou com o convite de sempre: "...dá uma passadinha lá, amanhã à noite!?."
Aquele início de dezembro estava sendo infernal. Na faculdade a disciplina de direito civil estava me matando. Eu simplesmente não entendia o que o cara, um professor metido a estrela, queria. No trabalho as coisas não iam melhor. Eu já havia me decidido a participar da greve geral contra o Plano Cruzado, anunciada para a semana seguinte, e o meu empenho em tentar convencer os colegas a participarem também, acabou por reverberar nos andares de acima do sóbrio prédio de tijolos à vista da esquina da Voluntários da Pátria com a Cel. Vicente, sede da Mesbla em Porto Alegre.
Um pouco antes do fim do expediente, Jorge, o gerente boa praça, veio falar comigo. "Vamos tomar umas? Só umas! rs. Hoje eu tenho que chegar mais cedo em casa." Um pouco depois lá estávamos nós, eu, o Jorge e o Artur, a caminho de um barzinho que ficava em frente ao Viaduto da Conceição, e que era de um tio da mulher do Jorge, o seu Jairo, um policial civil aposentado. Era a hora do pico. A fuligem que saía dos escapamentos dos ônibus que transitavam, modorrentos, pela Voluntários, deixava as partículas do diesel suspensas na superfície fina do entardecer.
Artur trabalhava na contabilidade e além de termos começado mais ou menso na mesma época na empresa, estudávamos juntos na Unisinos, eu cursava direito e ele engenharia mecânica. Talvez por uma certa semelhança de temperamentos acabamos por nos tornar grandes amigos, e de tanto frequentar a sua casa, virei meio que um membro da sua família, e depois de um breve namoro com a irmã dele, Simone, acabei também amigo e interlocutor dela, que cursava Medicina na PUC.
Artur trabalhava na contabilidade e além de termos começado mais ou menso na mesma época na empresa, estudávamos juntos na Unisinos, eu cursava direito e ele engenharia mecânica. Talvez por uma certa semelhança de temperamentos acabamos por nos tornar grandes amigos, e de tanto frequentar a sua casa, virei meio que um membro da sua família, e depois de um breve namoro com a irmã dele, Simone, acabei também amigo e interlocutor dela, que cursava Medicina na PUC.
Além de grão de bico em conserva, que comprava no Mercado Municipal e trazia para essas rodadas no bar do seu Jairo, segundo ele "para dar uma forrada", Jorge gostava também de longas conversas,tautologias e cerveja. Naquele início de noite, depois de enxugar algumas geladas e de tecer comentários efusivos sobre a região glútea de uma nova vendedora da seção de discos, Jorge entabulou uma conversa mais séria. "Paulo, eles estão de olho! Quem participar da greve vai ficar com o pescoço na degola. Eu te indiquei ao programa de gerente trainee e se tu participares dessa paralisação, pode esquecer...".
Eu gostava mesmo do Jorge. Naqueles meus quase três anos de Mesbla foram algumas madrugadas entornando juntos umas geladas, fosse inverno ou verão. "Obrigado, Jorge, eu te agradeço mesmo! Mas sabe o que é?...". Jorge me interrompeu, tão logo comecei a me justificar. "Paulo, não me fales nada agora, ainda não! Eu gosto de ti, e tu sabes disso, e por isso, só por isso... vou te falar umas coisas e tu vais me ouvir, até o fim." Eu andava cansado mesmo, e não estava com a mínima vontade de entabular qualquer discussão, apenas beber. Então deixei que o Jorge falasse até se cansar, o que era um pouco difícil, o Jorge se cansar de falar.
"Sabe o que mais me agrada em ti...?" Fez uma pausa, e enquanto escolhia as palavras, deu um gole, acendeu mais um cigarro e ficou me encarando com os seus olhos esbugalhados. Balancei negativamente a cabeça, com um ar um tanto divertido. "Tu és um pouco parecido comigo, Paulo. Tu és honesto e ingênuo, como eu era! Honesto demais, essa é a verdade. Inteligente, sim. Mas honesto. Só que um honesto do tipo romântico, e ingênuo. Aliás, anota aí, todo o romântico é um ingênuo. E essa frase é minha, pode registrar". O Jorge adorava esses clichês, cuja a autoria ele sempre atribuía a si mesmo.
"E o mundo, a vida e a puta que pariu não costumam perdoar os românticos." Nova pausa, outro gole e mais umas tragadas. "Eu sei que esse emprego e essa história de gerente trainee podem nem ser grande coisa pra ti. Quantos anos? Vinte e dois, vinte e três...", Confirmei, "Vinte e três, na semana que vem." "E vamos comemorar aqui, no Jairo. Mas olha só. Vinte e três! Toda uma vida pela frente. Então eu vou te contar umas coisas... que você não sabe...". A essa altura a fala já estava enrolada. E depois de outro gole, pausa e tragada, arrematou, com uma certa teatralidade: "Minha família já foi subversiva! Bem, ao menos uma parte dela. E eu? Eu era, um pouco."
"Sabe o que mais me agrada em ti...?" Fez uma pausa, e enquanto escolhia as palavras, deu um gole, acendeu mais um cigarro e ficou me encarando com os seus olhos esbugalhados. Balancei negativamente a cabeça, com um ar um tanto divertido. "Tu és um pouco parecido comigo, Paulo. Tu és honesto e ingênuo, como eu era! Honesto demais, essa é a verdade. Inteligente, sim. Mas honesto. Só que um honesto do tipo romântico, e ingênuo. Aliás, anota aí, todo o romântico é um ingênuo. E essa frase é minha, pode registrar". O Jorge adorava esses clichês, cuja a autoria ele sempre atribuía a si mesmo.
"E o mundo, a vida e a puta que pariu não costumam perdoar os românticos." Nova pausa, outro gole e mais umas tragadas. "Eu sei que esse emprego e essa história de gerente trainee podem nem ser grande coisa pra ti. Quantos anos? Vinte e dois, vinte e três...", Confirmei, "Vinte e três, na semana que vem." "E vamos comemorar aqui, no Jairo. Mas olha só. Vinte e três! Toda uma vida pela frente. Então eu vou te contar umas coisas... que você não sabe...". A essa altura a fala já estava enrolada. E depois de outro gole, pausa e tragada, arrematou, com uma certa teatralidade: "Minha família já foi subversiva! Bem, ao menos uma parte dela. E eu? Eu era, um pouco."
"Hoje? Hoje eu sou a Suíça!", continuou Jorge. "Tá vendo o Jairo ali? O Jairo esteve do outro lado. Ele sabe de tudo, tudo o que acontecia no Palácio da Polícia. Bem, continuando... eu fui um pouco subversivo quando tinha mais o menos uns 23 anos. Já ouviram falar do Coronel Cardim? Da tomada de Três Passos? Pois é. Meu tio, o irmão de minha mãe, participou daquilo tudo. Acontece que todos nós lá em casa éramos brizolistas naquela época. 1965! Vocês sabem o que fizeram com eles? Com a turma do Cardim? Não, não sabem. Bem, não sou eu quem vai contar!". Aquilo soava realmente engraçado e um tanto surreal para mim e para Ricardo.
"Mas o que realmente importa, e o que eu quero te falar, Paulo, e para ti também, Ricardo, é..." Nova pausa, gole e baforada. "Cuidado, eles podem voltar!" Ricardo então rebateu: "Quem, Jorge, os milicos?!" "Claro, os milicos, os verde-oliva, o esteio da nação, ou tu achas o que? Que se eles quiserem, não dão o bote novamente?" Ricardo rebateu: "Jorge, esses caras estão completamente desmoralizados, demais para pensarem em voltar. Olha as barbaridades que fizeram, e o estado que eles entregaram o país!" Jorge insistiu: "Gurizada, ouçam. Esses caras só foram ali dar uma cuspida. Então se as coisas não andarem como eles quiserem, eles voltam. Sabe o motivo? Esses caras acham, por razões que eu desconheço, que eles são a pátria, entendeu? O povo para eles é só um apêndice, entende? Que quando inflama, eles cortam e jogam fora. Entendam bem, não é que eles achem que são os defensores dela, da pátria, e coisa e tal. Eles pensam, mesmo, que são a própria. Então, me ouçam, se cuidem. Essas greves, essas manifestações... Se cuidem!"
Enquanto o seu Jairo cuidava para que os copos não ficassem vazios, as palavras do Jorge iam ficando cada vez mais desconexas e distantes. Pari passu, a medida que a penumbra redesenhava contornos, os donos da noite na Voluntários ocupavam seus feudos.
terça-feira, 6 de dezembro de 2016
Dentro dos olhos dela...
o universo amanhecia...
dentro dos olhos dela.
E havia uma janela
que dava para horizontes
dentro dos olhos dela.
O trem e a marmita fria,
as horas de trabalho sem fim,
a volta, enfim, e o cansaço
a se esvair num regaço
dentro dos olhos dela.
Dentro dos olhos dela
as luzes se acendiam...
dentro dos olhos dela.
E ainda que o mundo não quisesse,
as noites eram sempre quermesses
dentro dos olhos dela.
Dentro dos olhos dela
o universo amanhecia
e dentro dos olhos dela
havia uma janela
que dava para horizontes...
dentro dos olhos dela.
domingo, 20 de novembro de 2016
Sobre as coisas que pensamos quando estamos a sós
" Só feche seu livro quem já aprendeu
Só peça outro amor quem já deu o seu
Quem não soube a sombra, não sabe a luz
Vem não perde o amor de quem te conduz "
Só peça outro amor quem já deu o seu
Quem não soube a sombra, não sabe a luz
Vem não perde o amor de quem te conduz "
quinta-feira, 17 de novembro de 2016
quarta-feira, 16 de novembro de 2016
Sobre os Pequenos Milagres da Vida
Ela desabrochou com as primeiras horas do dia.
E sem alardes,
sem nenhuma razão aparente
e também sem qualquer outra pretensão,
que não a de desabrochar
simplesmente,
projetou suas pétalas em direção ao sol,
delicadamente.
Uma borboleta prostrada e velha,
um beija-flor que há muito não beijava
e uma abelha exaurida, que há algum tempo perdera suas asas e agora só observava,
observavam.
A tarde veio e se foi.
A borboleta, pelo discreto, errático e derradeiro voo,
o beija-flor, por seu último e mais apaixonado beijo
e a abelha, pela doçura inaudita daquele último néctar,
agradeceram por ela,
e pelos pequenos milagres da vida.
Quando a noite chegou, enfim,
só os pirilampos testemunharam a partida!
terça-feira, 11 de outubro de 2016
Universos Paralelos
Lá fora, eu sei, amanhece.
Mas aqui, em nosso pequeno universo,
estrelas andarilhas ainda desfiam seus novelos,
suspensas sobre o véu e a faina.
Quando a janela se abrir, amor, acredites,
o dia há de incinerar os sonhos,
e a avidez há de apagar as promessas.
Mas aqui, em nosso pequeno universo encapsulado pela bruma,
e onde os astros rabiscam suas trajetórias excêntricas,
chego a crer, com a ingenuidade dos bêbados,
que é possível, sim,
que tudo já estivesse escrito nas estrelas.
sexta-feira, 26 de agosto de 2016
apenas há alguns instantes
Depois de olhar descuidadamente para os dois lados ela atravessou a rua e andou, sem pressa, por mais duas quadras até chegar a Alameda das Borboletas. Percorreu ainda alguns metros e deteve-se junto as escadarias do velho prédio. O tempo, há muito, igualmente detivera-se ali. Seus olhos buscaram por algo que só a lembrança retivera: Risos e flores indiferentes ao concreto insípido; olhares furtivos que prometiam o desconhecido; roçar de lábios e de dedos; estranhamentos desafiavam as tardes baldias depois da escola. Tudo impregnara tudo, e a gravidade dos anos não conseguiu obliterar a leveza e a bruma ali onde a felicidade, um dia, aninhara-se apenas para observar os filhos prediletos da primavera. Além daqueles limites, só os escombros e a entropia.
sexta-feira, 5 de agosto de 2016
Gabriela
Continuo te esperando... Quem me dera que em uma manhã qualquer, por algum equívoco do espaço-tempo, tu entrasses por aquela porta, mochila nas costas, sorriso nos lábios e a face iluminada pelo sol de uma primavera imemorial!
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
Mais um dia
As costas contra as cordas denunciavam a aflitiva posição no ringue. O último golpe na linha da cintura o deixara completamente sem ar. Esforçava-se para manter a cabeça oculta atrás dos punhos vacilantes, mas o sangue que vertia de seus supercílios abertos deixava a sua visão turva. Lembrou-se, então, daquela manhã de setembro e do sol refletindo no rosto dela. Vestia uma camiseta amarela com pequenas flores vermelhas; os cabelos soltos, os olhos amendoados e as mãos inquietas, de uma alva delicadeza. O adversário, implacável, continuava a castigar-lhe, agora com uma combinação que parecia interminável. Mas foi um jab de esquerda que fez seus joelhos dobrarem. Apelou para o clinch, e apenas por um instante a lona pareceu-lhe o destino inexorável. Foi na primavera de 1986; Paulo descia pela Rua Dr. Flores e Yasmine estava em frente a uma vitrine; os olhos dele buscaram os dela e desde então eles foram os seus faróis. Buscou uma última lufada de onde não havia; levantou os olhos, endireitou os joelhos trêmulos e refez a guarda num derradeiro e tormentoso esforço. Ele sabia que as duas coisas realmente importantes àquela altura eram, permanecer em pé, e continuar respirando. E foi o que fez. O gongo soou. Claudicante, foi para o corner solitário - os corners são sempre solitários. Amanhã seria um outro dia! E tudo o que ele podia fazer, pelo menos por ora, era permanecer em pé... e respirando!
terça-feira, 26 de julho de 2016
segunda-feira, 25 de julho de 2016
Fragmentos do dia
Estavas tão distraída
que nem te deste conta
quando um sopro de brisa entrou pela janela
e brincou com a penugem da tua nuca.
Por onde andavas então
enquanto teus olhos passeavam a esmo?
Variáveis sobre a Impermanência
Eu sempre me vou. Gosto disso. Gosto do gosto que levo quando me vou. E invariavelmente me vou à noite. Isso porque gosto do gosto da noite, da solidão da noite, da brisa fresca da noite em meu rosto vincado. Houve algumas ocasiões, raras, é verdade, em que pensei em quedar-me. Mas logo me dei conta da impossibilidade em fazê-lo. Minha bagagem é leve. Aquilo que realmente importa eu carrego dentro de mim mesmo, inclusive aquele sorriso luminoso que me deste naquela longínqua tarde de abril.
segunda-feira, 4 de julho de 2016
O quantum e o impressionismo
"Impression du Soleil Levant", de Monet, tela que deu nome ao movimento.
terça-feira, 28 de junho de 2016
Pelos olhos de Galileu
Na noite de 4 janeiro de 1610 a lua, as estrelas e os planetas testemunharam o momento exato em que, pela primeira vez, um homem olhou bem dentro dos olhos do Cosmos,
e o universo nunca mais foi o mesmo desde então.
Meus olhos nunca mais foram os mesmos depois de te ver passar.
E aquele universo de outrora, só meu, tão estável e acolhedor, colapsou-se.
Todas as leis que regiam o meu cotidiano tedioso foram subvertidas pelo teu horizonte de singularidades.
domingo, 29 de maio de 2016
Outro dia, talvez
Não se vá, minha amada ...
Hoje não, outro dia talvez
Se tu me deixares hoje talvez eu não saiba como voltar para casa
Olhes, as ruas estão quase vazias, só sobraram os solitários
Setembro agora é apenas uma lembrança distante
E a faixa de areia foi engolida pela ressaca
Não se vá, meu amor...
Hoje não, outro dia talvez
terça-feira, 17 de maio de 2016
Paisagens
- Jamais! Isso nunca! De jeito nenhum! Não, mesmo! Você enlouqueceu por acaso?!
- Lena, veja bem, eu não pedi pra fazer sexo anal contigo. Eu perguntei se você queria casar comigo; só isso!
- Fabrício, eu não quero ser rude, mas acho que essa foi a coisa mais estúpida que eu ouvi você dizer nesse tempo todo que estamos juntos, e olha que a gente já falou muita besteira! Como assim, "quer casar comigo?" Fabrício, a gente se conhece o que, há dois meses? Três, no máximo!
- Lena, eu não te entendo. Você tem uma cabeça completamente descolada, nada convencional, não está nem aí pra quase nada, e me vem com coisas como, ah, a gente se conhece há dois meses e blá blá blá. Como se isso realmente contasse pra alguma coisa e ...
- Olha, amor, vamos lá, deixa eu tentar explicar o meu ponto de vista. Ouve o que você mesmo acabou de dizer: "Você tem uma cabeça completamente descolada, nada convencional". Veja bem, Fabrício, ninguém tem uma cabeça completamente aberta, entendeu? Todo mundo é convencional em algum ponto, em alguma coisa, até os malucos observam alguma convenção em algum lugar, sei lá, em alguma ocasião. E nesse aspecto eu sou convencional: o casamento é uma convenção que eu levo à sério demais pra me envolver com ele, e também porque eu acho que já faliu faz tempo. Por que eu iria querer me envolver com um negócio falido? Mas você tá falando sério?! Mesmo?!
- Sabe, Lena, deixa pra lá! Faça de conta que eu nunca te fiz essa pergunta, tá bom? Mas assim, só pra encerrar esse assunto: eu acreditava, mesmo, de verdade, que havia algo entre a gente, e quando eu falo de algo entre a gente eu quero dizer algo a mais, entende...? Foda-se, eu vou dizer... Eu pensei que a gente se amava, entendeu agora?! Sim, porque eu te amo!
- Mas, amor, o que tem a ver o casamento com o que rola entre nós dois? É, eu acho que te amo também; e não vai ficar chateado por eu dizer que acho que te amo. Olha, você sabe, meu pai é psicanalista e, sei lá, talvez por influência dele, até bem pouco tempo eu nem acreditava nessa coisa de amor, achava que isso nem existia, e se existisse de fato, eu tinha certeza de que não era pra mim. Mas então você apareceu... e me fez duvidar dessas minhas convicções. Mas olha só, de qualquer modo, pra mim, uma coisa é o amor e outra, bem diferente, é o casamento, entende? E isso não vai mudar pra mim.
- Tá bom, Lena, eu não vou mais falar nesse assunto contigo, nunca mais!
- Ah, você ficou chateado!
- Não, não tem problema, eu supero. Me dá licença, eu vou ao banheiro...
Lena e Fabrício se casaram dois meses depois, e foram singularmente felizes nos anos que se seguiram, donde se poderia concluir que amor, casamento, felicidade e convicções são temas que não necessariamente andam juntos e que também não necessariamente possuem qualquer lógica a priori. Ou possuem, sei lá!
quinta-feira, 5 de maio de 2016
As raízes expostas depois da tempestade
sexta-feira, 22 de abril de 2016
Quando o amor acontece
Nenhuma rede de segurança
ou placas, sinalizando o caminho.
A bússola hesita em face do polo magnético.
O horizonte se esvai em horizontes
e a retina, descolada pelo deslumbramento,
apenas revolve, sem saber ao certo quando ou como.
O imponderável nunca foi tão imponderável,
e a entropia do mundo que se fragmenta não é a desordem
mas sim o amor acontecendo quando, aparentemente, não devia .
Quando as pontes se partem
Uma ponte caída interrompe a caminhada.
O sol já vai se pôr,
e há que se acender a fogueira.
No céu, duas ou três estrelas observam, silentes,
a solidão que, tal como um predador faminto, espreita.
Um sorriso tímido, mas ainda assim um sorriso,
se desvencilha de algum lugar da lembrança,
e sem qualquer motivo aparente
pousa na superfície dos lábios.
O dia se despede afinal.
A noite vai ser longa, fria... e bela.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
Ofélia, a filha do Conselheiro
terça-feira, 9 de fevereiro de 2016
De quem já foi Dom Quixote
Por onde andaste, Dulcineia de Tomboso?
Saibas que em todas as primaveras que se seguiram eu vim aqui
e sentado naquele mesmo banco esperei por ti
A cidade, as flores da cidade e todas as janelas, abertas, aguardavam por tua volta, Dulcineia
E Rocinante, coitado, há muito tempo se foi, partiu a tua procura e dele nunca ninguém mais soube
Quem me dera, Dulcineia, quem me dera voltar a roda do tempo
E todos os versos do mundo
Os sussurros dos amantes varando a noite eterna do cosmos
E você, só você, Dulcineia, "...Que así envidiada fuera, y no envidiara
Y fuera alegre el tiempo que fué triste..."
Por onde andaste então, Dulcineia de Tomboso...?
inter esse
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