quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O sumidouro da Voluntários - parte II

    Natália! Era esse o seu nome. Ou, pelo menos, o nome que ela escolhera quando decidiu mudar-se para o prediozinho de número 87, na Rua Senhor dos Passos. Foi Melissa quem primeiro me contou de sua chegada, quando nos esbarramos nas escadarias naquela manhã de sábado. "Ela é linda... tu vais gostar dela...é inteligente...Aliás, todos vão gostar dela... Somos amigas desde a adolescência...". A Mel era assim mesmo, era da sua índole exagerar um pouco as coisas, então... Mel arrematou com o convite de sempre: "...dá uma passadinha lá, amanhã à noite!?."

     Aquele início de dezembro estava sendo infernal. Na faculdade a disciplina de direito civil estava me matando. Eu simplesmente não entendia o que o cara, um professor metido a estrela, queria. No trabalho as coisas não iam melhor. Eu já havia me decidido a participar da greve geral contra o Plano Cruzado, anunciada para a semana seguinte, e o meu empenho em tentar convencer os colegas a participarem também, acabou por reverberar nos andares de acima do sóbrio prédio de tijolos à vista da esquina da Voluntários da Pátria com a Cel. Vicente, sede da Mesbla em Porto Alegre.

     Um pouco antes do fim do expediente, Jorge, o gerente boa praça, veio falar comigo. "Vamos tomar umas? Só umas! rs. Hoje eu tenho que chegar mais cedo em casa." Um pouco depois lá estávamos nós, eu, o Jorge e o Artur, a caminho de um barzinho que ficava em frente ao Viaduto da Conceição, e que era de um tio da mulher do Jorge, o seu Jairo, um policial civil aposentado. Era a hora do pico. A fuligem que saía dos escapamentos dos ônibus que transitavam, modorrentos, pela Voluntários, deixava as partículas do diesel suspensas na superfície fina do entardecer.

     Artur trabalhava na contabilidade e além de termos começado mais ou menso na mesma época na empresa, estudávamos juntos na Unisinos, eu cursava direito e ele engenharia mecânica. Talvez por uma certa semelhança de temperamentos acabamos por nos tornar grandes amigos, e de tanto frequentar a sua casa, virei meio que um membro da sua família, e depois de um breve namoro com a irmã dele, Simone, acabei também amigo e interlocutor dela, que cursava Medicina na PUC. 
      
     Além de grão de bico em conserva, que comprava no Mercado Municipal e trazia para essas rodadas no bar do seu Jairo, segundo ele "para dar uma forrada", Jorge gostava também de longas conversas,tautologias e cerveja. Naquele início de noite, depois de enxugar algumas geladas e de tecer comentários efusivos sobre a região glútea de uma nova vendedora da seção de discos, Jorge entabulou uma conversa mais séria. "Paulo, eles estão de olho! Quem participar da greve vai ficar com o pescoço na degola. Eu te indiquei ao programa de gerente trainee e se tu participares dessa paralisação, pode esquecer...". 

    Eu gostava mesmo do Jorge. Naqueles meus quase três anos de Mesbla foram algumas madrugadas entornando juntos umas geladas, fosse inverno ou verão. "Obrigado, Jorge, eu te agradeço mesmo! Mas sabe o que é?...". Jorge me interrompeu, tão logo comecei a me justificar. "Paulo, não me fales nada agora, ainda não! Eu gosto de ti, e tu sabes disso, e por isso, só por isso... vou te falar umas coisas e tu vais me ouvir, até o fim." Eu andava cansado mesmo, e não estava com a mínima vontade de entabular qualquer discussão, apenas beber. Então deixei que o Jorge falasse até se cansar, o que era um pouco difícil, o Jorge se cansar de falar.

    "Sabe o que mais me agrada em ti...?" Fez uma pausa, e enquanto escolhia as palavras, deu um gole, acendeu mais um cigarro e ficou me encarando com os seus olhos esbugalhados. Balancei negativamente a cabeça, com um ar um tanto divertido. "Tu és um pouco parecido comigo, Paulo. Tu és honesto e ingênuo, como eu era! Honesto demais, essa é a verdade. Inteligente, sim. Mas honesto. Só que um honesto do tipo romântico, e ingênuo. Aliás, anota aí, todo o romântico é um ingênuo. E essa frase é minha, pode registrar". O Jorge adorava esses clichês, cuja a autoria ele sempre atribuía a si mesmo.

     "E o mundo, a vida e a puta que pariu não costumam perdoar os românticos." Nova pausa, outro gole e mais umas tragadas. "Eu sei que esse emprego e essa história de gerente trainee podem nem ser grande coisa pra ti. Quantos anos? Vinte e dois, vinte e três...", Confirmei, "Vinte e três, na semana que vem." "E vamos comemorar aqui, no Jairo. Mas olha só. Vinte e três! Toda uma vida pela frente. Então eu vou te contar umas coisas... que você não sabe...". A essa altura a fala já estava enrolada. E depois de outro gole, pausa e tragada, arrematou, com uma certa teatralidade: "Minha família já foi subversiva! Bem, ao menos uma parte dela. E eu? Eu era, um pouco."

     "Hoje? Hoje eu sou a Suíça!", continuou Jorge. "Tá vendo o Jairo ali? O Jairo esteve do outro lado. Ele sabe de tudo, tudo o que acontecia no Palácio da Polícia. Bem, continuando... eu fui um pouco subversivo quando tinha mais o menos uns 23 anos. Já ouviram falar do Coronel Cardim? Da tomada de Três Passos? Pois é. Meu tio, o irmão de minha mãe, participou daquilo tudo. Acontece que todos nós lá em casa éramos brizolistas naquela época. 1965! Vocês sabem o que fizeram com eles? Com a turma do Cardim? Não, não sabem. Bem, não sou eu quem vai contar!". Aquilo soava realmente engraçado e um tanto surreal para mim e para Ricardo.

     "Mas o que realmente importa, e o que eu quero te falar, Paulo, e para ti também, Ricardo, é..." Nova pausa, gole e baforada. "Cuidado, eles podem voltar!" Ricardo então rebateu: "Quem, Jorge, os milicos?!" "Claro, os milicos, os verde-oliva, o esteio da nação, ou tu achas o que? Que se eles quiserem, não dão o bote novamente?" Ricardo rebateu: "Jorge, esses caras estão completamente desmoralizados, demais para pensarem em voltar. Olha as barbaridades que fizeram, e o estado que eles entregaram o país!" Jorge insistiu: "Gurizada, ouçam. Esses  caras só foram ali dar uma cuspida. Então se as coisas não andarem como eles quiserem, eles voltam. Sabe o motivo? Esses caras acham, por razões que eu desconheço, que eles são a pátria, entendeu? O povo para eles é só um apêndice, entende? Que quando inflama, eles cortam e jogam fora. Entendam bem, não é que eles achem que são os defensores dela, da pátria, e coisa e tal. Eles pensam, mesmo, que são a própria.  Então, me ouçam, se cuidem. Essas greves, essas manifestações... Se cuidem!"

     Enquanto o seu Jairo cuidava para que os copos não ficassem vazios, as palavras do Jorge iam ficando cada vez mais desconexas e distantes. Pari passu, a medida que a penumbra redesenhava contornos, os donos da noite na Voluntários ocupavam seus feudos.

  

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