quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O sumidouro da Voluntários - III

     Quando bati os olhos no rádio-relógio já passava das onze. Eu não estava com muito ânimo para levantar e a cervejada da noite anterior ainda fazia sentir os seus efeitos. Artur me convidara para almoçar em sua casa, mas eu já havia me decidido a ficar em meu apartamento mesmo. Tinha que estudar. Depois de mais um cochilo breve, criei coragem e levantei. Fui até a cozinha e preparei o chimarrão.

     Abri a janela da sala, que dava para a Voluntários. O dia estava esplêndido, ensolarado e o azul do céu, por conta da chuva que caíra na madrugada, parecia ter sido lavado. No três-em-um botei  para tocar o último disco do Vitor Ramil, Tango, e então comecei a olhar a matéria. 
    
    Havia uma semana que o Marquinhos tinha retornado a Carazinho. Sua mãe, dona Jacira, estava seriamente doente, de modo que eu estava só, no apartamento. Mas a solidão não me incomodava em absoluto. Desde que viera para Porto Alegre, há cinco anos, eu tinha me acostumado a uma certa dose de solidão. E depois da morte de meu pai, há um ano e meio, as minhas idas a Cruz Alta estavam ficando cada vez mais escassas. O trabalho, a faculdade, mas, sobretudo nos últimos meses, o fato de minha mãe estar de caso com um sujeito, com tão pouco tempo de viuvez, o que me deixara transtornado, contribuíram bastante para isso.

     Em nossa última conversa eu tinha sido bastante duro com minha mãe; falei coisas das quais eu viria a me envergonhar mais tarde. Mas o fato é que havia passado pouco mais de um ano desde a morte de meu pai e então, em uma de minhas idas para casa, minha irmã mais velha, Marina, me confidenciou o que seria um suposto flerte de nossa mãe. Ela disse que só estava me contando para que eu não fosse tomado de surpresa. Naquela oportunidade, desconcertado e enfurecido, não consegui encarar minha mãe e cuidei de retornar prontamente para Porto Alegre. Torci para que, se aquilo fosse mesmo verdade, em minha próxima ida a história já tivesse terminado.

     No curso dos dois meses que antecederam minha última ida a Cruz Alta naquele ano, Marina ia me pondo ao par da evolução do relacionamento de minha mãe com o tal sujeito. Segundo Marina, minha mãe o havia apresentado ao seu marido, Pedro, meu cunhado. Depois ela convidou a ambos, Pedro e Marina, além de suas filhas, minhas sobrinhas, Beatrice e Berenice, para jantarem em nossa casa, ocasião em que, segundo Marina, o relacionamento foi selado. Nossa irmã mais nova, Adele, não se encontrava na ocasião, mas, segundo Marina, já estava ao par de tudo.

     A essa altura achei que era hora de por um ponto final naquele disparate. Então, quando chegou outubro, fui a Cruz Alta disposto a chamar minha mãe à razão. E assim, na conversa que se seguiu, muitas coisas foram ditas. Algumas que não deveriam, e outras que até deveriam, mas não naquela ocasião, e nem da forma como foram ditas.

     Hoje, depois de tanto tempo, olhando para trás, fico pensando no quão estranhas são essas narrativas quando as olhamos com distanciamento. A impressão que fica é a de que passamos boa parte da vida em um mundo só nosso, ideando coisas e formas ideais à revelia dos outros, e depois perdemos outra parte importante da vida tentando espremer os ideais, os outros e o universo nesses moldes, impondo assim uma dose extra de sofrimento a nós mesmos e àqueles a quem supostamente amamos, sofrimento além daquele que a vida já nos impõe naturalmente.

     À noite, depois de comer alguma coisa, decidi deixar um pouco de lado as questões sobre a ordem da vocação hereditária e aceitar o convite da Mel. Desci até o apartamento delas, como alias, costumava fazer aos domingos, invariavelmente para um carteado regado a algum tipo de destilado. E, justamente por ser um domingo, lá estavam todas elas, em torno da mesa da sala, jogando buraco: Mel, Andréa, Jociane, Nora, a gerente da casa, por assim dizer, e protagonizando a cena, ela, Natália.

   Andréa foi até a porta, beijou-me a boca furtivamente enquanto todas iam me apresentando simultaneamente. "Olha, Natália, esse é o Paulo... é o nosso vizinho aqui de cima... ele trabalha na Mesbla, está se formando em direito... e a parte mais deliciosa, o Paulo é poeta e por isso goza de... hmmm... certas regalias aqui conosco, entendeu?!" A última frase foi dita entre risos e gritinhos ruidosos. "E mais uma coisa importante sobre o Paulo, Natália, e que tu precisas saber: o Paulo é uma espécie de príncipe das meninas ali da Voluntários."

     "Como assim, uma espécie de príncipe?!", retorquiu Natália. "Ah, um dia a gente te conta essa história bem direitinho, é longa", completou Nora. "Não, não! Não é nada disso. Não acredites. Elas estão inventando umas coisas e exagerando outras!", disse eu, constrangido. "Hmmm... interessante! Fiquei curiosa para saber onde fica o exagero e aonde vai a invenção!", disse Natália, com um sorriso breve e luminoso, que me atingiram de um modo estranho, sem que eu estivesse preparado para o impacto.

     E foi assim que, em uma noite de dezembro daquele longínquo ano de 1986, em meio as risadas estridentes e conversas levianas que se atravessavam e se sobrepunham, tudo regado a uma batida de amendoim de péssima qualidade, conheci Natália.

     "Conhece o Bukowski, poeta?!", perguntou Natália a certa altura, e fazendo com os dedos sinal de entre aspas ao falar a palavra poeta. "Bem, dele eu li Cartas na Rua", respondi. "O que?! Crônicas de um amor louco, Misto quente, Fabulário geral do delírio cotidiano... nada?!", provocou ela. "Não, não.", respondi um pouco embaraçado.

     Lembro de ter pensado em como seria possível que estivesse ali alguém que, entre outras coisas, lera Bukowski, por exemplo. O mundo era mesmo um lugar estranho, ou, pelo menos, aquele mundo onde eu me encontrava.

 
 


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