Nos dias que se seguiram àquele primeiro encontro eu me pegava pensando em Natália com uma frequência irritante. Sim, irritante, porque parecia que eu não tinha controle sobre meus pensamentos. Minha cabeça revivificava cada detalhe, ainda que bobo, daquela noite.
O rosto levemente ovalado e expressivo de Natália, contra uma tez clara, quase diáfana, e que terminava em um queixo delicado mas incisivo, que parecia espetar o ar à sua frente, e com uma covinha quase imperceptível. Os seus olhos, que me faziam lembrar Homero, ao descrever os aqueus, por oblongos, eram de um verde acinzentado, herméticos, misteriosos, e nos quais se podiam antever dias azuis e ensolarados seguidos por tempestades avassaladoras. Mas era a boca, com seus arcos delicados e harmoniosos, que sintetizava bem o conjunto. Ah, com eu quis beijar aquela boca, confesso agora, desde o primeiro momento.
E enquanto eu repassava tudo, me surpreendi ao lembrar daquela impressão inicial, a de uma beleza trivial! Ainda que eu estivesse mais ou menos ciente de que o meu senso crítico e de moderação já não me acudiam àquela altura, tudo o que eu podia dizer então era que a beleza da Natália podia ser muitas coisas, menos trivial.
Uma outra coisa, até então totalmente estranha para mim, aconteceu naqueles dias; foi um sentimento que surgiu de modo quase imperceptível e foi se exasperando.
Apenas por um dia é a natureza daquilo que é efêmero, transitório, impermanente, mas nem por isso menos belo, singular ou desprovido de importância. Sempre haverá uma perspectiva, um fragmento encoberto, que faz com que algo qualquer envolva alguma qualidade incomum, ainda que ambígua, mas por isso mesmo, rara.
sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
quinta-feira, 29 de dezembro de 2016
O sumidouro da Voluntários - III
Quando bati os olhos no rádio-relógio já passava das onze. Eu não estava com muito ânimo para levantar e a cervejada da noite anterior ainda fazia sentir os seus efeitos. Artur me convidara para almoçar em sua casa, mas eu já havia me decidido a ficar em meu apartamento mesmo. Tinha que estudar. Depois de mais um cochilo breve, criei coragem e levantei. Fui até a cozinha e preparei o chimarrão.
Abri a janela da sala, que dava para a Voluntários. O dia estava esplêndido, ensolarado e o azul do céu, por conta da chuva que caíra na madrugada, parecia ter sido lavado. No três-em-um botei para tocar o último disco do Vitor Ramil, Tango, e então comecei a olhar a matéria.
Abri a janela da sala, que dava para a Voluntários. O dia estava esplêndido, ensolarado e o azul do céu, por conta da chuva que caíra na madrugada, parecia ter sido lavado. No três-em-um botei para tocar o último disco do Vitor Ramil, Tango, e então comecei a olhar a matéria.
Havia uma semana que o Marquinhos tinha retornado a Carazinho. Sua mãe, dona Jacira, estava seriamente doente, de modo que eu estava só, no apartamento. Mas a solidão não me incomodava em absoluto. Desde que viera para Porto Alegre, há cinco anos, eu tinha me acostumado a uma certa dose de solidão. E depois da morte de meu pai, há um ano e meio, as minhas idas a Cruz Alta estavam ficando cada vez mais escassas. O trabalho, a faculdade, mas, sobretudo nos últimos meses, o fato de minha mãe estar de caso com um sujeito, com tão pouco tempo de viuvez, o que me deixara transtornado, contribuíram bastante para isso.
Em nossa última conversa eu tinha sido bastante duro com minha mãe; falei coisas das quais eu viria a me envergonhar mais tarde. Mas o fato é que havia passado pouco mais de um ano desde a morte de meu pai e então, em uma de minhas idas para casa, minha irmã mais velha, Marina, me confidenciou o que seria um suposto flerte de nossa mãe. Ela disse que só estava me contando para que eu não fosse tomado de surpresa. Naquela oportunidade, desconcertado e enfurecido, não consegui encarar minha mãe e cuidei de retornar prontamente para Porto Alegre. Torci para que, se aquilo fosse mesmo verdade, em minha próxima ida a história já tivesse terminado.
No curso dos dois meses que antecederam minha última ida a Cruz Alta naquele ano, Marina ia me pondo ao par da evolução do relacionamento de minha mãe com o tal sujeito. Segundo Marina, minha mãe o havia apresentado ao seu marido, Pedro, meu cunhado. Depois ela convidou a ambos, Pedro e Marina, além de suas filhas, minhas sobrinhas, Beatrice e Berenice, para jantarem em nossa casa, ocasião em que, segundo Marina, o relacionamento foi selado. Nossa irmã mais nova, Adele, não se encontrava na ocasião, mas, segundo Marina, já estava ao par de tudo.
A essa altura achei que era hora de por um ponto final naquele disparate. Então, quando chegou outubro, fui a Cruz Alta disposto a chamar minha mãe à razão. E assim, na conversa que se seguiu, muitas coisas foram ditas. Algumas que não deveriam, e outras que até deveriam, mas não naquela ocasião, e nem da forma como foram ditas.
Hoje, depois de tanto tempo, olhando para trás, fico pensando no quão estranhas são essas narrativas quando as olhamos com distanciamento. A impressão que fica é a de que passamos boa parte da vida em um mundo só nosso, ideando coisas e formas ideais à revelia dos outros, e depois perdemos outra parte importante da vida tentando espremer os ideais, os outros e o universo nesses moldes, impondo assim uma dose extra de sofrimento a nós mesmos e àqueles a quem supostamente amamos, sofrimento além daquele que a vida já nos impõe naturalmente.
À noite, depois de comer alguma coisa, decidi deixar um pouco de lado as questões sobre a ordem da vocação hereditária e aceitar o convite da Mel. Desci até o apartamento delas, como alias, costumava fazer aos domingos, invariavelmente para um carteado regado a algum tipo de destilado. E, justamente por ser um domingo, lá estavam todas elas, em torno da mesa da sala, jogando buraco: Mel, Andréa, Jociane, Nora, a gerente da casa, por assim dizer, e protagonizando a cena, ela, Natália.
Andréa foi até a porta, beijou-me a boca furtivamente enquanto todas iam me apresentando simultaneamente. "Olha, Natália, esse é o Paulo... é o nosso vizinho aqui de cima... ele trabalha na Mesbla, está se formando em direito... e a parte mais deliciosa, o Paulo é poeta e por isso goza de... hmmm... certas regalias aqui conosco, entendeu?!" A última frase foi dita entre risos e gritinhos ruidosos. "E mais uma coisa importante sobre o Paulo, Natália, e que tu precisas saber: o Paulo é uma espécie de príncipe das meninas ali da Voluntários."
"Como assim, uma espécie de príncipe?!", retorquiu Natália. "Ah, um dia a gente te conta essa história bem direitinho, é longa", completou Nora. "Não, não! Não é nada disso. Não acredites. Elas estão inventando umas coisas e exagerando outras!", disse eu, constrangido. "Hmmm... interessante! Fiquei curiosa para saber onde fica o exagero e aonde vai a invenção!", disse Natália, com um sorriso breve e luminoso, que me atingiram de um modo estranho, sem que eu estivesse preparado para o impacto.
E foi assim que, em uma noite de dezembro daquele longínquo ano de 1986, em meio as risadas estridentes e conversas levianas que se atravessavam e se sobrepunham, tudo regado a uma batida de amendoim de péssima qualidade, conheci Natália.
"Conhece o Bukowski, poeta?!", perguntou Natália a certa altura, e fazendo com os dedos sinal de entre aspas ao falar a palavra poeta. "Bem, dele eu li Cartas na Rua", respondi. "O que?! Crônicas de um amor louco, Misto quente, Fabulário geral do delírio cotidiano... nada?!", provocou ela. "Não, não.", respondi um pouco embaraçado.
Lembro de ter pensado em como seria possível que estivesse ali alguém que, entre outras coisas, lera Bukowski, por exemplo. O mundo era mesmo um lugar estranho, ou, pelo menos, aquele mundo onde eu me encontrava.
Em nossa última conversa eu tinha sido bastante duro com minha mãe; falei coisas das quais eu viria a me envergonhar mais tarde. Mas o fato é que havia passado pouco mais de um ano desde a morte de meu pai e então, em uma de minhas idas para casa, minha irmã mais velha, Marina, me confidenciou o que seria um suposto flerte de nossa mãe. Ela disse que só estava me contando para que eu não fosse tomado de surpresa. Naquela oportunidade, desconcertado e enfurecido, não consegui encarar minha mãe e cuidei de retornar prontamente para Porto Alegre. Torci para que, se aquilo fosse mesmo verdade, em minha próxima ida a história já tivesse terminado.
No curso dos dois meses que antecederam minha última ida a Cruz Alta naquele ano, Marina ia me pondo ao par da evolução do relacionamento de minha mãe com o tal sujeito. Segundo Marina, minha mãe o havia apresentado ao seu marido, Pedro, meu cunhado. Depois ela convidou a ambos, Pedro e Marina, além de suas filhas, minhas sobrinhas, Beatrice e Berenice, para jantarem em nossa casa, ocasião em que, segundo Marina, o relacionamento foi selado. Nossa irmã mais nova, Adele, não se encontrava na ocasião, mas, segundo Marina, já estava ao par de tudo.
A essa altura achei que era hora de por um ponto final naquele disparate. Então, quando chegou outubro, fui a Cruz Alta disposto a chamar minha mãe à razão. E assim, na conversa que se seguiu, muitas coisas foram ditas. Algumas que não deveriam, e outras que até deveriam, mas não naquela ocasião, e nem da forma como foram ditas.
Hoje, depois de tanto tempo, olhando para trás, fico pensando no quão estranhas são essas narrativas quando as olhamos com distanciamento. A impressão que fica é a de que passamos boa parte da vida em um mundo só nosso, ideando coisas e formas ideais à revelia dos outros, e depois perdemos outra parte importante da vida tentando espremer os ideais, os outros e o universo nesses moldes, impondo assim uma dose extra de sofrimento a nós mesmos e àqueles a quem supostamente amamos, sofrimento além daquele que a vida já nos impõe naturalmente.
À noite, depois de comer alguma coisa, decidi deixar um pouco de lado as questões sobre a ordem da vocação hereditária e aceitar o convite da Mel. Desci até o apartamento delas, como alias, costumava fazer aos domingos, invariavelmente para um carteado regado a algum tipo de destilado. E, justamente por ser um domingo, lá estavam todas elas, em torno da mesa da sala, jogando buraco: Mel, Andréa, Jociane, Nora, a gerente da casa, por assim dizer, e protagonizando a cena, ela, Natália.
Andréa foi até a porta, beijou-me a boca furtivamente enquanto todas iam me apresentando simultaneamente. "Olha, Natália, esse é o Paulo... é o nosso vizinho aqui de cima... ele trabalha na Mesbla, está se formando em direito... e a parte mais deliciosa, o Paulo é poeta e por isso goza de... hmmm... certas regalias aqui conosco, entendeu?!" A última frase foi dita entre risos e gritinhos ruidosos. "E mais uma coisa importante sobre o Paulo, Natália, e que tu precisas saber: o Paulo é uma espécie de príncipe das meninas ali da Voluntários."
"Como assim, uma espécie de príncipe?!", retorquiu Natália. "Ah, um dia a gente te conta essa história bem direitinho, é longa", completou Nora. "Não, não! Não é nada disso. Não acredites. Elas estão inventando umas coisas e exagerando outras!", disse eu, constrangido. "Hmmm... interessante! Fiquei curiosa para saber onde fica o exagero e aonde vai a invenção!", disse Natália, com um sorriso breve e luminoso, que me atingiram de um modo estranho, sem que eu estivesse preparado para o impacto.
E foi assim que, em uma noite de dezembro daquele longínquo ano de 1986, em meio as risadas estridentes e conversas levianas que se atravessavam e se sobrepunham, tudo regado a uma batida de amendoim de péssima qualidade, conheci Natália.
"Conhece o Bukowski, poeta?!", perguntou Natália a certa altura, e fazendo com os dedos sinal de entre aspas ao falar a palavra poeta. "Bem, dele eu li Cartas na Rua", respondi. "O que?! Crônicas de um amor louco, Misto quente, Fabulário geral do delírio cotidiano... nada?!", provocou ela. "Não, não.", respondi um pouco embaraçado.
Lembro de ter pensado em como seria possível que estivesse ali alguém que, entre outras coisas, lera Bukowski, por exemplo. O mundo era mesmo um lugar estranho, ou, pelo menos, aquele mundo onde eu me encontrava.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2016
O sumidouro da Voluntários - parte II
Natália! Era esse o seu nome. Ou, pelo menos, o nome que ela escolhera quando decidiu mudar-se para o prediozinho de número 87, na Rua Senhor dos Passos. Foi Melissa quem primeiro me contou de sua chegada, quando nos esbarramos nas escadarias naquela manhã de sábado. "Ela é linda... tu vais gostar dela...é inteligente...Aliás, todos vão gostar dela... Somos amigas desde a adolescência...". A Mel era assim mesmo, era da sua índole exagerar um pouco as coisas, então... Mel arrematou com o convite de sempre: "...dá uma passadinha lá, amanhã à noite!?."
Aquele início de dezembro estava sendo infernal. Na faculdade a disciplina de direito civil estava me matando. Eu simplesmente não entendia o que o cara, um professor metido a estrela, queria. No trabalho as coisas não iam melhor. Eu já havia me decidido a participar da greve geral contra o Plano Cruzado, anunciada para a semana seguinte, e o meu empenho em tentar convencer os colegas a participarem também, acabou por reverberar nos andares de acima do sóbrio prédio de tijolos à vista da esquina da Voluntários da Pátria com a Cel. Vicente, sede da Mesbla em Porto Alegre.
Um pouco antes do fim do expediente, Jorge, o gerente boa praça, veio falar comigo. "Vamos tomar umas? Só umas! rs. Hoje eu tenho que chegar mais cedo em casa." Um pouco depois lá estávamos nós, eu, o Jorge e o Artur, a caminho de um barzinho que ficava em frente ao Viaduto da Conceição, e que era de um tio da mulher do Jorge, o seu Jairo, um policial civil aposentado. Era a hora do pico. A fuligem que saía dos escapamentos dos ônibus que transitavam, modorrentos, pela Voluntários, deixava as partículas do diesel suspensas na superfície fina do entardecer.
Artur trabalhava na contabilidade e além de termos começado mais ou menso na mesma época na empresa, estudávamos juntos na Unisinos, eu cursava direito e ele engenharia mecânica. Talvez por uma certa semelhança de temperamentos acabamos por nos tornar grandes amigos, e de tanto frequentar a sua casa, virei meio que um membro da sua família, e depois de um breve namoro com a irmã dele, Simone, acabei também amigo e interlocutor dela, que cursava Medicina na PUC.
Artur trabalhava na contabilidade e além de termos começado mais ou menso na mesma época na empresa, estudávamos juntos na Unisinos, eu cursava direito e ele engenharia mecânica. Talvez por uma certa semelhança de temperamentos acabamos por nos tornar grandes amigos, e de tanto frequentar a sua casa, virei meio que um membro da sua família, e depois de um breve namoro com a irmã dele, Simone, acabei também amigo e interlocutor dela, que cursava Medicina na PUC.
Além de grão de bico em conserva, que comprava no Mercado Municipal e trazia para essas rodadas no bar do seu Jairo, segundo ele "para dar uma forrada", Jorge gostava também de longas conversas,tautologias e cerveja. Naquele início de noite, depois de enxugar algumas geladas e de tecer comentários efusivos sobre a região glútea de uma nova vendedora da seção de discos, Jorge entabulou uma conversa mais séria. "Paulo, eles estão de olho! Quem participar da greve vai ficar com o pescoço na degola. Eu te indiquei ao programa de gerente trainee e se tu participares dessa paralisação, pode esquecer...".
Eu gostava mesmo do Jorge. Naqueles meus quase três anos de Mesbla foram algumas madrugadas entornando juntos umas geladas, fosse inverno ou verão. "Obrigado, Jorge, eu te agradeço mesmo! Mas sabe o que é?...". Jorge me interrompeu, tão logo comecei a me justificar. "Paulo, não me fales nada agora, ainda não! Eu gosto de ti, e tu sabes disso, e por isso, só por isso... vou te falar umas coisas e tu vais me ouvir, até o fim." Eu andava cansado mesmo, e não estava com a mínima vontade de entabular qualquer discussão, apenas beber. Então deixei que o Jorge falasse até se cansar, o que era um pouco difícil, o Jorge se cansar de falar.
"Sabe o que mais me agrada em ti...?" Fez uma pausa, e enquanto escolhia as palavras, deu um gole, acendeu mais um cigarro e ficou me encarando com os seus olhos esbugalhados. Balancei negativamente a cabeça, com um ar um tanto divertido. "Tu és um pouco parecido comigo, Paulo. Tu és honesto e ingênuo, como eu era! Honesto demais, essa é a verdade. Inteligente, sim. Mas honesto. Só que um honesto do tipo romântico, e ingênuo. Aliás, anota aí, todo o romântico é um ingênuo. E essa frase é minha, pode registrar". O Jorge adorava esses clichês, cuja a autoria ele sempre atribuía a si mesmo.
"E o mundo, a vida e a puta que pariu não costumam perdoar os românticos." Nova pausa, outro gole e mais umas tragadas. "Eu sei que esse emprego e essa história de gerente trainee podem nem ser grande coisa pra ti. Quantos anos? Vinte e dois, vinte e três...", Confirmei, "Vinte e três, na semana que vem." "E vamos comemorar aqui, no Jairo. Mas olha só. Vinte e três! Toda uma vida pela frente. Então eu vou te contar umas coisas... que você não sabe...". A essa altura a fala já estava enrolada. E depois de outro gole, pausa e tragada, arrematou, com uma certa teatralidade: "Minha família já foi subversiva! Bem, ao menos uma parte dela. E eu? Eu era, um pouco."
"Sabe o que mais me agrada em ti...?" Fez uma pausa, e enquanto escolhia as palavras, deu um gole, acendeu mais um cigarro e ficou me encarando com os seus olhos esbugalhados. Balancei negativamente a cabeça, com um ar um tanto divertido. "Tu és um pouco parecido comigo, Paulo. Tu és honesto e ingênuo, como eu era! Honesto demais, essa é a verdade. Inteligente, sim. Mas honesto. Só que um honesto do tipo romântico, e ingênuo. Aliás, anota aí, todo o romântico é um ingênuo. E essa frase é minha, pode registrar". O Jorge adorava esses clichês, cuja a autoria ele sempre atribuía a si mesmo.
"E o mundo, a vida e a puta que pariu não costumam perdoar os românticos." Nova pausa, outro gole e mais umas tragadas. "Eu sei que esse emprego e essa história de gerente trainee podem nem ser grande coisa pra ti. Quantos anos? Vinte e dois, vinte e três...", Confirmei, "Vinte e três, na semana que vem." "E vamos comemorar aqui, no Jairo. Mas olha só. Vinte e três! Toda uma vida pela frente. Então eu vou te contar umas coisas... que você não sabe...". A essa altura a fala já estava enrolada. E depois de outro gole, pausa e tragada, arrematou, com uma certa teatralidade: "Minha família já foi subversiva! Bem, ao menos uma parte dela. E eu? Eu era, um pouco."
"Hoje? Hoje eu sou a Suíça!", continuou Jorge. "Tá vendo o Jairo ali? O Jairo esteve do outro lado. Ele sabe de tudo, tudo o que acontecia no Palácio da Polícia. Bem, continuando... eu fui um pouco subversivo quando tinha mais o menos uns 23 anos. Já ouviram falar do Coronel Cardim? Da tomada de Três Passos? Pois é. Meu tio, o irmão de minha mãe, participou daquilo tudo. Acontece que todos nós lá em casa éramos brizolistas naquela época. 1965! Vocês sabem o que fizeram com eles? Com a turma do Cardim? Não, não sabem. Bem, não sou eu quem vai contar!". Aquilo soava realmente engraçado e um tanto surreal para mim e para Ricardo.
"Mas o que realmente importa, e o que eu quero te falar, Paulo, e para ti também, Ricardo, é..." Nova pausa, gole e baforada. "Cuidado, eles podem voltar!" Ricardo então rebateu: "Quem, Jorge, os milicos?!" "Claro, os milicos, os verde-oliva, o esteio da nação, ou tu achas o que? Que se eles quiserem, não dão o bote novamente?" Ricardo rebateu: "Jorge, esses caras estão completamente desmoralizados, demais para pensarem em voltar. Olha as barbaridades que fizeram, e o estado que eles entregaram o país!" Jorge insistiu: "Gurizada, ouçam. Esses caras só foram ali dar uma cuspida. Então se as coisas não andarem como eles quiserem, eles voltam. Sabe o motivo? Esses caras acham, por razões que eu desconheço, que eles são a pátria, entendeu? O povo para eles é só um apêndice, entende? Que quando inflama, eles cortam e jogam fora. Entendam bem, não é que eles achem que são os defensores dela, da pátria, e coisa e tal. Eles pensam, mesmo, que são a própria. Então, me ouçam, se cuidem. Essas greves, essas manifestações... Se cuidem!"
Enquanto o seu Jairo cuidava para que os copos não ficassem vazios, as palavras do Jorge iam ficando cada vez mais desconexas e distantes. Pari passu, a medida que a penumbra redesenhava contornos, os donos da noite na Voluntários ocupavam seus feudos.
terça-feira, 6 de dezembro de 2016
Dentro dos olhos dela...
o universo amanhecia...
dentro dos olhos dela.
E havia uma janela
que dava para horizontes
dentro dos olhos dela.
O trem e a marmita fria,
as horas de trabalho sem fim,
a volta, enfim, e o cansaço
a se esvair num regaço
dentro dos olhos dela.
Dentro dos olhos dela
as luzes se acendiam...
dentro dos olhos dela.
E ainda que o mundo não quisesse,
as noites eram sempre quermesses
dentro dos olhos dela.
Dentro dos olhos dela
o universo amanhecia
e dentro dos olhos dela
havia uma janela
que dava para horizontes...
dentro dos olhos dela.
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