domingo, 8 de janeiro de 2017

O sumidouro da Voluntários - parte I

     De início, algumas advertências, que considero oportunas àqueles que irão dispender, talvez por mera generosidade, o seu valioso tempo na leitura dessa narrativa. E faço essas advertências para não ser tomado pelo Velho Marinheiro, de Coleridge, que ao deter um ouvinte e iniciar a sua ladainha, "Houve um navio...", obtém como resposta, "Solta-me! Solta-me barbado vagabundo!".

     Então, além de evitar ser tomado por inoportuno, com essas advertências, de certo modo, eu fico isento de ser tomado também por uma fraude literária, e pior, somente ao final da leitura. Assim, com cuidados que ora tomo, o leitor já poderá, espero, tirar suas conclusões de plano.
   
     Quanto as advertências, a primeira é a de que a história que contarei aqui teve lugar nos anos que se seguiram ao fim da ditadura. E porquê isso é de alguma forma relevante?  Bem, eu acho que ainda que a narrativa não tenha muito a ver, pelo menos diretamente, com a Repressão, o regime de força que durou vinte anos acabou por impregnar tudo, de um ou outro modo.

   É estranho... depois de tanto tempo! A mim, que passei infância e adolescência naquele período, me parece hoje que aqueles anos se distinguiram, entre tantas coisas, pelo modo como os discursos eram regurgitados. Alguém já disse algo sobre a estética fragmentária, descontínua, oblíqua que opunha-se às falas oficiais, e que em seus estertores já não disfarçavam suas contradições, a sua violência inerente, mas que também queriam aparentar outra coisa.

     Somente com o transcorrer dos anos, alguns de nós, os que achavam que haviam perdido algo durante aquele período, foram capazes de atar alguns fios, algumas daquelas pontas soltas. Meu pai disse certa feita, que a ditadura era o lugar dos castrados. A frase me seguiu tempo afora, talvez por não dizer quase nada, por ser tão somente uma frase de efeito .

     A segunda advertência é a de que eu sou um advogado!, e essa condição, entendam, afeta a minha forma de narrar, que já adianto, é, em muitas ocasiões, empolada. E porquê é empolada? Eu explico. O direito, para quem não sabe, é assim como uma enxada, e aqui não vai nenhuma intenção em ofender os agricultores e nem o seu honrado labor. Mas o direito se assemelha a um instrumento na medida em que, assim com a enxada, ele se presta a uma finalidade.

    Mas que finalidade seria essa, afinal, a do direito? A busca do bem comum? A da pacificação social? A da justiça enquanto equidade? Bem, a isso, para falar honestamente, depois de trinta anos de profissão, eu não saberia responde exatamente. Mas uma coisa eu sei com certeza, e lhes direi agora. A linguagem, o juridiquês, está para o direito assim como a batuta está para o maestro: faz parte do espetáculo! E ainda que se tente, não dá para se livrar facilmente do juridiquês, ele é um vício para o qual a ciência ainda não encontrou a cura. Mas lhes prometo tentar.

     E a terceira, e derradeira advertência, tem a ver com as razões que me impeliram a essa narrativa.  

    E que razões seriam essas, sinceramente, eu não tenho muita certeza! Pelo seu valor literário ou histórico vocês já podem, a essa altura, suspeitar que não, posto que, como já sabem agora,  não sou escritor e tampouco historiador. E ainda que me considere um leitor atento e, vai, porque não?, com uma certa erudição, como escritor sou bem medíocre, reconheço.

    Falta a mim o estilo, a originalidade, a estética, a verve etc.  E porque afirmo isso como tanta convicção? Ora, justamente porque sou um bom leitor! É penoso para qualquer um que tenha algum senso crítico escrever algo com pretensões literárias depois de já ter lido Cervantes, Dostoiévski, Tolstoi, Balzac, Shakespeare, Proust, Machado de Assis, Raduan Nassar e, com a devida vênia, Érico Veríssimo - e para evitar controvérsias eu já aviso, esse rol não se trata de numerus clausus. 

     Mas então, afinal de contas, porque dispender tempo com fatos obscuros, depois de tanto tempo? Alguém poderia controverter, não sem razão, que os motivos que levam alguém a escrever sobre episódios de cunho autobiográfico podem muito bem ser explicados pela vaidade de um ego grande, que não consegue se conter dentro dos seus limites. Um ego assim inflacionado de si mesmo poderia levar o tal sujeito a imaginar que o mundo não poderia passar sem saber sobre a sua história única, maravilhosa, heroica.

     Para esses que assim pensam eu afirmo, de antemão, que esse não é o meu caso. Não há traço nenhum de heroísmo naquilo que estou prestes a narrar, e também não há nada de maravilhoso ali. Além de que, em se tratando de mim, sou absolutamente prosaico, vivendo uma existência absolutamente trivial, como seria de se esperar de um advogado da área trabalhista, que eventualmente cuida de questões de família, mas jamais, nunca mesmo, da área penal, onde poderia, enfim, existir algum tipo de adrenalina. 

     A pergunta, não obstante, permanece:  Afinal de contas, porque revelar fatos de natureza pessoal, depois de tanto tempo? Talvez, e aqui um materialista convicto roga por uma dose generosa de indulgência, talvez porque não consigamos nos desvencilhar completamente daquela ideia de uma saudade etérea, de que Plantão nos falou. Ou porque, ainda que não o reconheçamos conscientemente ou talvez justamente ao contrário, por reconhecermos a dura verdade, a da nossa posição no cosmos, de absoluta irrelevância, talvez por isso tenhamos essas aspirações insensatas à imortalidade, continuando na esteira de Platão.

     E nessa última perspectiva eu acho que, no final das contas, todos guardamos essa aspiração velada e inverossímil de que seria de algum modo injusto se algo de nós, de singular e belo não continuasse para sempre, o beijo fugaz mas por alguma razão inesquecível, aquele por-de-sol nas pedras junto à praia, a troca de olhares que prometia a eternidade. Que isso permanecesse, pelo menos enquanto o universo continuasse a se expandir.     

     De qualquer sorte, seja pelo motivo que for, nos últimos meses, com uma frequência um tanto inconveniente, eu me pego e revivescer aquele período turbulento de minha vida e por conta do qual eu levei tempo considerável para pacificar a mim mesmo.   

     

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