domingo, 7 de maio de 2023

Sonhei que era um devaneio




Sonhei contigo a noite que passou.

Estávamos às margens da estradapróximos à velha ponte.

Tuas mãos desenhavam figuras imaginárias enquanto falavas,

e rias. 

Meus olhos, absortos nos teus, como que a perseguir pleiades,  torciam para que não te fosses.

Sem querer, entardeceu, e sem querer entardeci também.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Hibernação

Não quero lembrar do ano passado. Não gosto de pensar sobre ele, o ano passado. O ano passado poderia ser engolido por alguma espécie de dobra do espaço-tempo, e para mim não faria a menor diferença. Mas de qualquer modo, tanto faz; eu  já nem me importo mesmo com seja-lá-o-que-tenha-acontecido-no-ano-passado. Essa manhã, contudo, logo depois de acordar, fui até a janela e antes de abri-la me detive por alguns instantes. Algo pareceu-me novo. Um não-sei-o-quê de indistinguível, de sol, talvez, ou talvez por dentro, não sei. Num canto da calçada, ali na frente, um ramo verde se contorcia para vencer a fenda no concreto. "A cidade um dia já fora mais gentil", pensei, "quando ela ainda não sabia bem o que era ser uma cidade".  

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

O Lugar dos Afetos Atemporais

Havia esse lugar...

E ainda que restassem poucas coisas ali, sob uma fina camada de pó, calátides, envoltas pelas horas de outras eras, jaziam, marcas profundas e indeléveis. 

Um fim de tarde tingido pelo sol de outono; a camiseta, que um dia já fora vermelha mas agora esmaecera em amarelo; páginas arrancadas de um velho hinário; um sussurro ou outro se esgueirando pelas frinchas; películas em celuloide com imagens de uma outra vida que um dia, talvez, fora a minha.

Tentei algumas vezes, sem êxito, dispensar esses inquilinos extemporâneos, incômodos por sua falta de serventia.

Acontece que o lugar em que habitam está fora da minha jurisdição. É o lugar dos afetos imperscrutáveis, deeps words.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

As Promessas e seu algoz

 "Promessas foram feitas para não serem cumpridas!". Lembro-me bem do impacto que a frase exerceu sobre mim quando a ouvi pela primeira e única vez, diretamente dos lábios do ancião sábio e peregrino. Lembro-me também de tentar, pronta e atabalhoadamente, com veemência sem contudo atacar a premissa básica, retrucar-lhe: "Mas as promessas são, a seu modo, lugares de felicidade". "Para quem? Para os ingênuos, os tolos, ou para os jogadores?".  Décadas depois, sentado à beira do crepúsculo, faço um balanço de todas as promessas que fiz e das que me fizeram e, lhano, concluo, mas ainda como se fosse uma aspiração juvenil: O algoz das promessas é o tempo, e não os olhos dela...

terça-feira, 22 de setembro de 2020

O menino e seu primeiro amor

O pátio apinhado de infantes vestidos de azul; a longa escadaria que dava acesso ao prédio principal e à sua arquitetura severa; risadas que pipocavam aqui e ali e que contrastavam com um sol preguiçoso que parecia um tanto indisposto naquela manhã de março. 

Ela estava ali, parada, um pouco à frente na fila ao lado da sua.

Ele aproximou-se o tanto quanto pode, e tentou articular uma frase. Mas as palavras demoraram uma eternidade para chegar-lhe aos lábios.

Blem, blem, blem.

A fila começou a mover-se, mas ele permaneceu estático. Seus olhos continuaram cativos, cravados nas mechas que delicadamente pendiam ao longo da sua nuca. 

- Tá dormindo?! Mexa-se, vamos!

Naquela manhã, pela primeira vez em sua vida ele descobriu, perplexo, que seu coração lhe era um desconhecido: socando seu peito como um louco, estava a ponto de escapar-lhe pela boca.

 

 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

As graças de cada dia

Ela era sem graça, todos sabiam, e diziam. 

Ele também não tinha maiores atrativos.

Um dia se conheceram, e encheram de graça e de atrativos o mundo que inventaram. 

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

 

Recostada contra a parede do alpendre, uma réstia de sol assomava-lhe a pálpebra.

Os lêmures deixaram para trás um murmúrio, inaudível aos céticos e aos pobres.

A manhã se fora e a tarde... bem, a tarde ainda não dissera a que viera.

"E se um demiurgo louco esquecesse de inventar o tempo? Nesse universo improvável talvez os teus lábios ainda estivessem colados aos meus, para sempre".