quinta-feira, 1 de outubro de 2020

As Promessas e seu algoz

 "Promessas foram feitas para não serem cumpridas!". Lembro-me bem do impacto que a frase exerceu sobre mim quando a ouvi pela primeira e única vez, diretamente dos lábios do ancião sábio e peregrino. Lembro-me também de tentar, pronta e atabalhoadamente, com veemência sem contudo atacar a premissa básica, retrucar-lhe: "Mas as promessas são, a seu modo, lugares de felicidade". "Para quem? Para os ingênuos, os tolos, ou para os jogadores?".  Décadas depois, sentado à beira do crepúsculo, faço um balanço de todas as promessas que fiz e das que me fizeram e, lhano, concluo, mas ainda como se fosse uma aspiração juvenil: O algoz das promessas é o tempo, e não os olhos dela...

terça-feira, 22 de setembro de 2020

O menino e seu primeiro amor

O pátio apinhado de infantes vestidos de azul; a longa escadaria que dava acesso ao prédio principal e à sua arquitetura severa; risadas que pipocavam aqui e ali e que contrastavam com um sol preguiçoso que parecia um tanto indisposto naquela manhã de março. 

Ela estava ali, parada, um pouco à frente na fila ao lado da sua.

Ele aproximou-se o tanto quanto pode, e tentou articular uma frase. Mas as palavras demoraram uma eternidade para chegar-lhe aos lábios.

Blem, blem, blem.

A fila começou a mover-se, mas ele permaneceu estático. Seus olhos continuaram cativos, cravados nas mechas que delicadamente pendiam ao longo da sua nuca. 

- Tá dormindo?! Mexa-se, vamos!

Naquela manhã, pela primeira vez em sua vida ele descobriu, perplexo, que seu coração lhe era um desconhecido: socando seu peito como um louco, estava a ponto de escapar-lhe pela boca.

 

 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

As graças de cada dia

Ela era sem graça, todos sabiam, e diziam. 

Ele também não tinha maiores atrativos.

Um dia se conheceram, e encheram de graça e de atrativos o mundo que inventaram. 

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

 

Recostada contra a parede do alpendre, uma réstia de sol assomava-lhe a pálpebra.

Os lêmures deixaram para trás um murmúrio, inaudível aos céticos e aos pobres.

A manhã se fora e a tarde... bem, a tarde ainda não dissera a que viera.

"E se um demiurgo louco esquecesse de inventar o tempo? Nesse universo improvável talvez os teus lábios ainda estivessem colados aos meus, para sempre".


 

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Melancolia



Chovera intensamente a noite toda. Pela manhã, as ruas e praças eram quase um charco. Os prédios pareciam bunkers e dentro deles almas melancólicas se entrincheiravam à espera de que o sol lhes viesse redimir. O sol não veio, e continuou chovendo - agora uma chuva modorrenta - durante todo o dia. A certa altura, como se fosse uma orquestra de loucos, as buzinas lá fora prenunciaram que a noite estava ali, à espreita. Pensei, "...e se ela me ligasse? Se ela me ligasse o sol, certa e mansamente, retornaria". "Quanta bobagem", concluí. Meu gato, em sua sabedoria elementar, de gato, depois de dormitar ao longo da tarde, indiferente à qualquer devaneio sobre ligações telefônicas em uma eventual conexão com o retorno do sol, veio roçar-se, maliciosamente, em minhas pernas.  "Ahá, também estas melancólico, né?!" . De súbito, entretanto, lembrei-me! A bem da verdade, o que Theo sentia não era bem melancolia. É que estava na hora de reabastecer a sua tigela de ração. Bem, pelo menos alguém, naquele apartamento soturno, não perdera de todo a sanidade.      

domingo, 14 de junho de 2020

A Noite da Cidade Baixa



Hotel Cidade Baixa Porto Alegre | Hotel Intercity Cidade Baixa
Já vai longe aquela noite em que, Cidade Baixa adentro, saímos a explorar os bares e sua fauna notívaga.

Tu me falaste dos sonhos que ficaram pelo caminho, e eu te contei uma história estranha, de um fim de tarde em Montevidéu.

Guardo vividamente aquela canção que cantarolaste sentada na calçada enquanto tentavas perscrutar as estrelas,
"Todas las mañanas que viví, todas las calles donde me escondí..."

O luminoso faiscante do motel barato prometia a satisfação plena dos desejos ou a esperança de volta.

Quando o sol despachou todos os habitantes noturnos de volta aos seus recantos encobertos, recostaste tua cabeça em meu ombro, e adormecemos.




quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Erval Seco

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Madrugada serenada! O Erval se ressente pela chuva que não veio.
Uma noiva vestida de branco atravessa a rua dormente.
Abandonada no altar, suicidara-se. 
Da janela da mansarda eu a espio.

Enquanto todos os pássaros jazem em seus ninhos
eu asseguro às estrelas que jamais a abandonaria.

Engendro sonhos e adormeço. 

Um sopro repousa à margem da estrada, sob o caminho de leite.
Nunca mais tornarei a vê-la, e para sempre engendrarei sonhos!