- Constantina!
Uma lâmpada vacilante lançava sua luz de um amarelo envelhecido contra o interior do pequeno barco sacolejante que cruzava o rio Madre de Dios no meio da noite. Bem mais distante estavam as luzes de Puerto Maldonado que bruxuleavam no lado oposto da margem. Sobrepondo-se ao breu, o esqueleto da ponte metálica que ligaria a duas pontas da Carretera Interoceânica mais parecia a carcaça de um grande e ancestral animal há muito extinto.
- Conhece? Constantina?
O sujeito havia embarcado comigo em Rio Branco, no Acre, e depois de um dia inteiro de viagem em que quase não se ouvira dele uma palavra sequer, de repente, no meio daquela travessia insólita, contra o ruído do motor e meio que aos berros, resolvera puxar assunto!
- Conheço, de passagem. Fica próximo a Sarandi, não é?
- Isso. Pensei ter ouvido tu dizeres que era de Cruz Alta... presumi que podia conhecer... Constantina.
- Tu és de Constantina?
A minha pergunta banal pareceu tê-lo tomado de surpresa e, por alguma razão, o embaraçado. Ele desviou o seu olhar para algum lugar no escuro da noite; fez uma longa pausa, e quando eu já achava que havia se recolhido novamente ao seu silêncio mineral, irrompeu, com um sorriso meio retorcido:
- Não! Eu costumava ser de Passo Fundo.
- Ah, sim - respondi, não sem esconder uma certa irritação com a forma como a resposta fora dada. Ato contínuo, ele tornou aos olhos da noite, e eu às luzes bruxuleantes.
Na outra margem, veículos que pareciam uma espécie de tuc-tuc aguardavam para levar os passageiros que seguiriam adiante até o terminal rodoviário. Novamente aquele sujeito estranho, que pelo menos agora eu sabia tratar-se de um conterrâneo, gaúcho, como eu, se dirigiu a mim, pedindo para dividirmos o tuc-tuc, que mal comportava nós dois e as bagagens.
Atravessamos Puerto Maldonado e suas ruas excêntricas. Uma espécie de película lívida interpunha-se entre nós e a cidade, permitindo-nos apenas lobrigar seus contornos. Jovens malabaristas que mais pareciam ter saído de algum conto estranho de Edgar Allan Poe pululavam pelas esquinas principais. Durante o trajeto estreitamos as apresentações e trocamos algumas outras amenidades; eu me sentia um tanto desconfortável na companhia do sujeito, que agora eu sabia chamar-se Paulo. Mal chegamos no terminal rodoviário de Puerto Maldonado e já embarcamos; o ônibus que nos levaria a Cuzcu apenas aguardava a nossa chegada para dar partida. Sentamo-nos lado a lado, e a partir daí, pouco a pouco, como se tivesse esperado longamente por um momento como esse, Paulo começou a contar a sua história fantástica.
- No verão de 1977 eu tinha 17 anos, e ela 16. Na superfície, Constantina, com sua gente, era aquilo que as pequenas cidades e seus habitantes sempre aparentaram ser em tantos outros lugares dos fundões da América Latina: tediosa e melancólica. Aparentemente!, porque é justamente em lugares como esse que os dramas humanos se desenrolam, sem aspirar notoriedade, e por essa razão, mais profundos. Eu a chamava simplesmente de Moça; ela era a minha moça. Quanto a mim?, Gregor... Gregor Samsa era o meu nome, e por Gregor Samsa ela me tratava. O nosso mundo estava situado para além dos limites daquilo que se convencionou chamar de realidade objetiva.